Considerações críticas acerca da classificação DSM e suas implicações na diagnóstica contemporânea1
François Sauvagnat*
A primeira coisa a observar com respeito ao DSM é que seus editores pretendem fazê-lo como uma espécie de bíblia. Depois de tal pretensão, que se pretende seguir como insígnia, uma espécie de public relations, acreditamos que estamos no direito de colocarmos um certo número de questões.
A primeira é que é a Associação Estadunidense de Psiquiatria, que se considera como estando em posição de sugerir sua posição de impor um manual que sirva como referência para o mundo todo. Uma primeira dificuldade vem de tentar estabelecer qual é o estado de saúde mental dos Estados Unidos. A Organização Mundial de Saúde classificou os estados mentais em termos de saúde, os Estados Unidos é o 36º país, e vem justo depois do Marrocos, em termos de eficácia terapêutica geral. Não é simplesmente a saúde mental. Não existem cifras em termos de saúde mental. Mas é claro, os Estados Unidos se posicionam em termos de saúde mental entre países de terceiro mundo. Então, a primeira coisa que podemos dizer de maneira objetiva.
A segunda questão é a partir de quando esse país, cujos resultados são fracos, pretendeu impor um modelo que seja universal.
É interessante fazer um pouco de história. A inversão da posição dos Estados Unidos em termos de psiquiatria data de 1980. Se existe entre vocês pessoas que estudaram a psicologia social, se lembram talvez o nome de “Rosenheim”. Ele era um professor de psicologia social, ainda vivo, que se divertiu na década de 1970 a mostrar que os psiquiatras americanos eram incapazes de diagnosticar a esquizofrenia. Vão à internet e pesquisem vocês mesmo: a experimentação de Rosenheim. Ele enviava estudantes para consultas psiquiátricas e lhes dizia: “Vão lá e simulem quatro sintomas”. E ele tentou provar que os psiquiatras eram incapazes de distinguir entre um simulador e um verdadeiro doente. Ele fez isso inúmeras vezes. Ele mesmo, uma vez, anunciou na imprensa: “Atenção! Eu vou enviar simuladores aos hospitais psiquiátricos”. Um mês depois, saiu um comunicado, um anúncio de psiquiatras, entre os quais Spitzer, aquele que criou justamente o DSM III, dizendo: “Encontramos simuladores!” Rosenheim publicou então um comunicado: “Eu não enviei nenhum estudante nessas últimas semanas”.
Eis o clima nos anos 1970. Essa era a imprensa americana, o público americano. Agora, a Associação Mundial de Psiquiatria, presidida por Henri Ey, um psiquiatra francês, mas de tradição francesa e alemã, fenomenológica, amigo de Lacan. Henri Ey queria denunciar três coisas. A psiquiatria soviética, porque ela possuía categorias que permitiam enviar seus opositores para os serviços psiquiátricos. Em segundo lugar, o que nós chamamos de antipsiquiatria. Henri Ey pensava que esse movimento era perigoso e que deixava sem tratamento, sem cuidado, pessoas que efetivamente precisavam de ajuda. O terceiro escândalo, segundo Henri Ey, é a psiquiatria americana. Ele não dizia exatamente assim, mas ele manifestou isso inúmeras vezes em torno da questão do diagnóstico da esquizofrenia.
Os americanos, até 1980, falavam de reação psicótica. A reação psicótica era uma categoria extremamente larga, ampla. Por exemplo, se alguma pessoa se irrita e começa a gritar, é uma reação psicótica. A menor reação emocional um pouco mais viva era classificada como reação psicótica. Tentaram se comparar então entre médicos britânicos e médicos americanos, e não havia nenhum acordo entre eles. Os médicos britânicos utilizavam a psiquiatria europeia. E os americanos possuíam uma psiquiatria de sua própria inspiração. Isso produziu uma reação exasperada dos americanos, que disseram “todos estão contra nós. Encontraremos uma solução definitiva”. A solução definitiva foi o DSM. Então o DSM se apresentou como uma classificação não teórica, objetiva e Spitzer se comparou, ele mesmo de maneira modesta, a Kraepelin, “Eu sou o novo Kraepelin”. Uma reação narcísica.
Isso nos permite entender que a escritura do DSM foi uma reação a esse vivido de humilhação, sentido pelos psiquiatras americanos da época. A ideia deles é: “o caos é no mundo, os terroristas estão no mundo”, e eles chegam para encontrar a solução. O DSM III é apresentado então com inúmeras dimensões, com respeito à qual a dimensão privilegiada é aquela do sintoma, entendido no sentido epidemiológico do termo. É um sintoma que deve ser constatado a partir do dossiê do paciente. Por exemplo, vocês podem encontrar em quase todas as categorias que a doença tem uma duração mais ou menos longa. De onde vem isso? Vem de que versões anteriores do DSM eram constituídas por instrumentos que não eram diagnósticos, mas instrumentos epidemiológicos. Isso permitia justamente trabalhar sobre dossiês, e inicialmente se tratava de encontrar causas da morte, da mortalidade. Se tentarmos entender a que tipo de paciente o primeiro DSM se endereça, é um paciente morto. Eu não quero dizer que o melhor paciente é o paciente morto, mas a epidemiologia trata disso. É a aplicação de um modelo epidemiológico a uma pratica que deve na verdade se realizar diante de pacientes vivos. Irá então buscar critérios, objetivos, sem se perguntar se o paciente pode responder; se não é incomodado em responder e se em tal hora do dia, terá uma tendência a responder de outra maneira. Então se trata de considerar o paciente como um dossiê.
Existem quatro dimensões principais no DSM: o sintoma constatável; a segunda, a personalidade e a debilidade mental, o que é, digamos, bastante surpreendente. O transtorno da personalidade é posto no mesmo nível que a debilidade mental. O que é, convenhamos, bastante estranho. Veremos por que. O terceiro aspecto concerne à questão da inserção; e a quarta dimensão vai considerar a intensidade objetiva dos transtornos. O resultado então do DSM III será que o diagnóstico tal que nós aprendíamos a fazê-lo a partir da psicopatologia não é mais considerado como uma prática oficial. A partir daí é necessário nos perguntarmos de que se trata aí, e também se perguntar por que existe um número tão grande de pessoas que se queixaram, tanto médicos praticantes quanto pacientes. É necessário também se lembrar que o DSM III foi responsável por uma falsa epidemia, a epidemia de personalidades múltiplas, que terminou oficialmente em 1994 com a aparição do DSM IV.
É necessário fazer uma pequena pausa e colocar a questão: “o que fazemos quando fazemos um diagnóstico?”. Quando falamos de patologia ou normalidade, qual a primeira coisa em que pensamos efetivamente? Existem duas maneiras de pensar a respeito desse problema. Pensar, refletir sobre o que é a normalidade, e em segundo lugar quais são as demandas sociais com respeito aos sintomas psicopatológicos. Sobre a normalidade, existem cinco posições correntes. De um lado, existem todos os trabalhos de Canguilhem, George Canguilhem, onde ele opõe duas grandes posições. Uma posição onde supomos que existe um indivíduo normal, que será dotado de todas as qualidades, e um indivíduo anormal, que é mal dito por Deus, um pobre coitado, e que a norma estatística permitiria justamente essa diferenciação entre os dois. Em segundo lugar, Canguilhem oferece sua própria posição que é de dizer “a norma, a lei é alguma coisa de relativo. Cada sociedade fabrica suas leis”. Por exemplo, quando eu era criança, nos anos 1950, nós tínhamos um manual de ciências naturais que explicava o que deveríamos comer, beber etc. Eu ainda tenho a lembrança que ali estava escrito que um homem normal, um adulto, devia beber um litro de vinho por dia. Era a norma francesa. E o livro advertia que beber muito mais que isso só era possível para os homens que tinham trabalho manual. Eles podiam fazer isso, mas era perigoso beber muito. Esse tipo de standard também encontramos em cada cultura. Sabemos que existem culturas que quando, por exemplo, você fala com alguém, você tem que permanecer a pelo menos 1,50 metros de distância. Em outras culturas, se você se posicionar a mais de 30 centímetros, é um signo de desprezo. Temos coisas assim que são muito variadas. Por outro lado, vemos o quanto a psiquiatria tem muito a ver com a retórica. Então, a ideia de Canguilhem é de que as normas são variadas. O sujeito individual será tentado a jogar com as normas, em particular em certas idades, por exemplo, na adolescência. Então, todo mundo terá certas condutas que em algum momento serão julgadas delinquentes. Mas isso que para Canguilhem qualificaria o indivíduo normal será justamente a capacidade de jogar com as normas, de, por exemplo, em certo momento não a respeitar, de maneira alguma, mas que é capaz de deter-se e não permanecer fixado sob uma norma.
Vocês, no Brasil, têm outras definições, por exemplo, em medicina. Antes de haver análises de sangue, estatísticas, havia a noção de silêncio dos órgãos. Isso é porque normalmente o individuo normal recebe muito pouca informação, sinais do seu corpo. Recebe algumas informações, por exemplo, no momento da digestão, mas na maior parte do tempo o corpo é silencioso. Daí essa noção de silêncio dos órgãos como normalidade. Nós temos uma noção nos Estados Unidos que é o “transhumanismo”. O nome transhumanismo é um indivíduo normal, que não é normal. Isso significa que todo mundo deveria se tornar uma espécie de super-homem. Talvez certos medicamentos, certos tratamentos nos permitiriam um super-homem. Por exemplo, a publicidade que foi feita pela zoloft ou a ritalina etc. A ideia de que um indivíduo habitual é insuficiente. Que cada um deveria se tornar um ideal. Por exemplo, recorrer então à cirurgia estética é uma nova noção de normalidade. Possuímos também a concepção de sintoma de Lacan, onde o sintoma será uma particularidade, na maior parte do tempo, secreta. Um tipo de estilo pessoal que se apresentará como uma solução a alguma coisa que não possui solução. O que não tem solução é a relação com o sexo. Entre homens e mulheres, não há solução. Então, temos um sintoma como solução. É uma maneira simples de apresentar as coisas. Existem muitos tipos de sintoma, mas todos respondem ao mesmo problema.
Se tentamos saber quais são as determinações e demandas sociais com respeito ao sintoma, o que vemos inicialmente é o sintoma como a oportunidade industrial. Existem empresas que fazem a promoção de certo sintoma. É o que chamamos de fabricação de sintomas, como promoção de sintomas. “Começamos por promover os sintomas, e talvez você tenha sintomas. Como você prova que você não tem esse sintoma? Estamos quase seguros que você tem esse sintoma. E temos o tratamento. Por que você ainda não o comprou? Você será o último a não ter esse tratamento perfeito”.
Em segundo lugar, temos o sintoma como um risco a ser avaliado. Então, tem todo esse discurso da avaliação. A isso chamamos de medicina baseada em evidências. As provas supostamente objetivas. O que é interessante é que essa medicina baseada em evidencias foi promovida nos Estados Unidos há 25 anos. O resultado é que os Estados Unidos se posicionam em 36ª posição, logo depois do Marrocos. Não geograficamente, mas estatisticamente.
Depois disso você tem o sintoma como handicap, como estigmata. Temos ai algo que está fortemente presente no DSM. No DSM existem categorias que foram impostas por certa parte da população. Por exemplo, possuir um sintoma previsto no DSM permite que você tenha uma pensão. O bem-fazer, que é a medicina, passa a se encarregar de seu sintoma, um sintoma honesto, um verdadeiro sintoma. Então, existe esse aspecto de qualificação.
Depois disso, você tem o discurso do reducionismo biológico que diz: “o sintoma deve ter uma causa biológica. O problema é que não sabemos como encontrar a causa biológica”, ao menos no caso das doenças mentais. Em seguida temos também o uso religioso, segundo o qual, em diferentes tipos de culturas, temos diferentes culturas que valorizam ou abominam certos tipos de sintomas. Temos também os usos políticos e jurídicos. Por exemplo, o governo de Sarkozy declarou que o ano de 2012 é o ano do autismo. Isso não permitiu que ele fosse reeleito. Eis um uso político, uma qualificação jurídica do sintoma, e frequentemente como categorias implícitas que são aquelas da vitima ou do agressor.
Por exemplo, os borderlines possuem a reputação de serem pessoas ruins, desagradáveis. Nos Estados Unidos, alguém qualificado de borderline é alguém desagradável. Essas demandas sociais com respeito a um sintoma são reconhecidas, a questão é “a psicopatologia pode ir para além disso?” A resposta é simples. Existem sujeitos que possuem uma vida interior secreta, que é a hipótese justamente da psicanálise. Existe um inconsciente que na maior parte do tempo é recalcado, recusado, mas que em certo momento pode aparecer. Esse inconsciente, esse inconsciente estruturado, também é organizado, centrado sobre certos fantasmas, cuja função essencial é a de garantir o limite do corpo. Inicialmente, limites que o sujeito fabrica com seu fantasma. Dito de outra maneira, quando alguém vem nos procurar e diz “bom dia, eu tenho um sintoma”, claro que o que queremos saber, enquanto trabalhando com psicopatologia, é se esse sintoma é alguma coisa de persistente, não em termos de duração estatística, mas enquanto fantasma. Todo problema é essa bipartição do sintoma. Por exemplo, um transtorno obsessivo compulsivo descrito pelo DSM. A descrição do DSM não permite diferenciar uma pessoa que possui efetivamente estereotipias psicóticas de alguém que possui uma neurose obsessiva no sentido da psicanálise. Esse é um exemplo, mas é verdade em todos os casos. O que faz com que a objeção fundamental seja essa.
Um sintoma objetivo é um sintoma para a sociedade. A sociedade existe, evidentemente, mas o que nos interessa é o sintoma para o sujeito, ele mesmo. E isso é uma coisa que somente ele pode falar, pode dizer a respeito. E pra que ele possa falar disso, ele tem que estar vivo. Ele tem que admitir que em certo momento vai falar uma coisa, em outro momento vai falar outra, mas que secretamente ele vai ter um fantasma que é fixo, e do qual ele não pode falar tão facilmente. O que vai supor essa famosa relação de transferência, que não é necessária no que diz respeito ao DSM, porque o DSM concebe pessoas já mortas.
Os psicanalistas americanos compreenderam bem o problema, e existiram inúmeras tentativas de corrigir o DSM e de tentar retificar essa descrição, uma delas eu participei, o PDE, um Manual Psicodinâmico Diagnóstico, que na pagina dois diz “Um sintoma, nele mesmo, não quer dizer nada, ao contrario do que diz o DSM, e todo o problema, claro, é o fundo psíquico”. Ele não diz estrutura, porque o termo não existe nos Estados Unidos, mas é isso que ele quer dizer. Então existe esse manual, que foi proposto, mas que não teve a publicidade suficiente, e que foi publicado por uma aliança entre associações psicanalíticas americanas. Porque essa diferenciação é importante, porque o DSM implicou na caracterização de uma epidemia muito grande, uma falsa epidemia, de personalidades múltiplas, que, por exemplo, somente existia em certos países, em outros países não. E que existiu em função do respeito que certos médicos praticantes tinham pelo DSM. Ela existiu um pouco na Inglaterra, muito nos Estados Unidos, e existem países que nunca tiveram uma epidemia de personalidades múltiplas, e são justamente os países nos quais a psicanálise permaneceu forte.
O DSM IV foi, com respeito a isso, um grande progresso. Ele fez desaparecer, ele declarou que as personalidades múltiplas não existem e que eram um transtorno iatrogênico. Mas o progresso não parou por aí, porque segundo o seu criador, Allen Frances, o criador do DSM IV, esse manual criou três novas falsas epidemias. Em relação a essas três epidemias, uma é o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, o Transtorno Bipolar da Criança (uma forma psicótica de depressão da criança), que existe somente nos Estados Unidos, que os Canadenses observam, controlam e tentam impedir de atravessar a fronteira. E em seguida o espectro do autismo. Eu não estou dizendo que o autismo não exista, mas a definição norte-americana do autismo, em particular o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, não especificado de outra maneira. Basta um único de oito sintomas possíveis do autismo para portar esse diagnóstico. Eu vos lembro que esse Transtorno Invasivo do Desenvolvimento se multiplicou para mais de cem vezes, até o ponto que os psiquiatras californianos se perguntaram se não era uma invasão mexicana. Então controlava-se a fronteira. “Esses mexicanos possuem crianças autistas, e é por isso que eles atravessam a fronteira. Para se beneficiarem de nossos tratamentos”. Mas não. Quanto a isso, verificamos que é simplesmente o fato que, uma vez tomando o DSM como instrumento diagnóstico, insistindo apenas um pouco, se torna muito difícil de encontrar alguém que não seja autista. Nós estamos com um problema de porosidade de categorias. Não são categorias à prova d’água. Um grande progresso de uma epidemia para três epidemias. Inclusive, essas epidemias às vezes encorajadas por certas empresas, e agora o DSM V está anunciado. Estatisticamente do um aos três, se calculamos, o DSM V deve produzir nove epidemias. Então, existe hoje toda uma série de protestos contra a maneira segundo a qual o DSM V está sendo atualmente proposto. Eu não tenho tempo de entrar em detalhes, mas existem discussões extremamente vigorosas, por exemplo, sobre a restrição de critérios do autismo.
Existem, igualmente, discussões sobre as formas adicção. A adicção sendo uma patologia extremamente abundante no domínio norte-americano. Existe também toda uma discussão para saber qual é a diferença entre o luto e a verdadeira depressão. A partir de quando um sintoma é verdadeiramente patológico. Eu diria que existe mesmo certa inquietude em nossos colegas norte-americanos. Em particular, Frances Allen, que admite agora que ele provocou três epidemias. Ele se endereça a seu colega Kupfer, que é o chefe do DSM V, e diz a ele: “Tome cuidado, porque você esta correndo o risco de provocar novas epidemias”. Essa é a situação hoje. Poderíamos entrar no detalhe de alguma patologia em especial, mas deixamos isso pra discussão.
Pergunta - É interessante a gente ver a importância da caracterização das normas para a definição dos sintomas. Como a gente parte do ponto de vista da psicanálise, nós vamos um pouco além para pensar a questão da singularidade desse sintoma. É interessante isso, pois, por mais que a gente tenha uma tradição de cem anos ou mais dentro da psicanálise, cada vez mais vemos principalmente com o esforço do DSM V, uma coisa que iria aquém dessas normas. Então é como se nós tivéssemos em um cabo de guerra. De um lado, em direção à padronização, e de outro, os partidários da singularidade do sintoma. É interessante isso, porque a gente está justamente no momento em que em diversos países, há um esforço para que possamos aliar a noção de norma com a de singularidade. Isso parte justamente de vários países que não são, poderíamos dizer, de língua inglesa, justamente. Então como é que a gente poderia tentar pensar essa discussão não restringindo, simplesmente, a uma questão geográfica, mas propriamente epistêmica, para que não fiquemos restritos a guetos teóricos. Alguma sugestão, alguma ideia?
Sauvagnat - Eu não entendo porque uma associação de psiquiatras de um país qualquer que tem resultados fracos, por qual milagre, porque a reflexão deles se tornaria uma regra mundial, uma norma mundial. De qualquer maneira é muito estranho. Imaginemos que se exporte o sistema penal norte-americano. Ninguém suportaria. Eu diria que simplesmente se estabelece certo consenso em torno de certas categorias que se isolam. O DSM era simplesmente uma lista de categorias ligadas a um país para responder as necessidades desse país. Cada um faz o que quer com seu próprio país. Não sei porque uma categoria ligada a certo país valeria necessariamente para os outros. Por exemplo, o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. Um diagnóstico extremamente duvidoso. Em minha opinião isso recobra, recorta casos bastante diferentes. Eu dou um curso sobre isso e recomendo a meus alunos, “quando você receber uma criança com esse diagnóstico, você deve reclassificá-la entre oito categorias diferentes”. A mesma coisa para crianças bipolares americanas. É suficiente ler a literatura canadense. Os canadenses consideram que uma patologia local, criada assim, entre eles, não deve interessar ao Canadá. Obviamente é uma patologia suposta possuir um tratamento. Existem antidepressivos e neurolépticos de nova geração. São promovidas tais como a ritalina foi promovida para os transtornos da atenção. Com relação ao autismo é a mesma coisa, existem tratamentos que foram propostos se nenhum resultado. Então, não devemos acreditar que somos minoritários quando criticamos esses modelos. Eu não acredito que sejamos minoritários. Existem manuais que são vários, efetivamente vários, e que permitem trabalhar de maneira muito mais razoável. E a questão geográfica se resume a: se existem países que utilizam tais elementos, é uma questão deles. A menos que queiramos perguntar às Nações Unidas se existe um problema humanitário com respeito ao qual seria necessário intervir. Não é essa a questão justamente.
Comentário - Tomando o comentário, a questão que o Roberto coloca e a resposta do professor Sauvagnat, a gente vê que de um lado a gente pode pensar que a questão, o estatuto, a dimensão epistemológica relativa ao DSM, à abordagem de sintomas. Essa dimensão epistemológica é quase neutra, quase como o discurso científico, ele mesmo é quase neutro, de certa maneira. Por um lado, o uso que podemos fazer de uma capacidade científica de objetivação qualquer, esse uso é ideológico. Por outro lado, mas não separado desse, se a gente vê a lista de modos de abordagem, de concepção, de determinação, de conceitualização do que seja um sintoma, o que a gente vê é que você tem justamente, uma questão relativa ao fantasma puramente individual, o que do ponto de vista coletivo representa a mesma função; é ideológico. A ideologia, ela mesma, como um fantasma coletivo, nesse sentido. E o que ele vai fazer é justamente reagrupar o que existe de uma possibilidade epistemológica quase no valor de um procedimento qualquer de objetivação, por um lado, e o estatuto realmente cultural do sintoma. Como, por exemplo, dizer “americanos, somos empiristas lógicos, por um lado, acreditamos na possibilidade de objetivação”, e o sintoma responde a esse postulado ideológico ele mesmo, é quase como se, mesmo que de um lado a gente tem como critérios, obviamente H²O talvez seja H²O em qualquer pais, é no entanto, uma soma matemática. Por outro lado o sintoma, ele tem uma natureza propriamente política, e nesse caso a dimensão toda, é verdade que a dimensão mais própria a esse debate é de natureza política, porque o sintoma mesmo é de natureza política. Mesmo se eu possa usar estatística para estudar demografia populacional, por exemplo.
Pergunta: Não desconsiderando todo o ponto de vista da normatividade, toda a ideologia que está em cima do DSM, não desconsiderando a questão (epidemiológica). Mas é porque eu vejo também sob o ponto de vista de outro extremo, que quando você tira uma norma pra classificar o que tem na (epidemiologia), as queixas que os pacientes apresentam, e tudo, e considerar esse sujeito como único, considerar esse sujeito como apresentando os sintomas que são legítimos, e que ele vai apresentar na clínica. Eu penso no outro extremo também, de qual seria, se existe essa proposta, o padrão, não pensando num padrão de normalidade, mas num padrão de normatividade, digamos assim. Não sei se classificar é a melhor forma para indicar qual seria o limite do sofrimento desse sujeito, que ele está apresentando, e qual seria o caminho do tratamento dele. Porque eu penso no outro extremo também, que os terapeutas também são humanos, eles também são subjetividades, e como tanto eles também estão sujeitos a falhas, estão sujeitos a toda uma relatividade também, que pode interferir nesse sofrimento. Tá, existe uma norma, uma norma que classifica, que limita, mas ao mesmo tempo o sujeito, ele também, a gente tira essa norma, ele vai parar na clínica, mas ele vai parar na mão de um terapeuta, que também é humano. Ele apresenta uma queixa legitima, e como que ele vai trabalhar com isso? Entendeu? Bem ou mal é um investimento que ele faz. Ele exige certo grau de segurança naquele investimento que ele está sentido. Então, qual vai ser o critério? Existe algum critério ou não? Porque o terapeuta também é um sujeito, ele também tem as idiossincrasias dele. Então, o que fica no lugar? Se existiria algum, porque norma não seria a melhor palavra, mas algum outro padrão de normatividade que possa dar uma segurança pro sujeito no investimento do tratamento que ele procurou. O sujeito chega à clínica apresentando uma queixa que é legitima. Então, na falta de um padrão de normalidade, não estou fazendo nenhum julgamento de valor em cima disso. O que é que fica no lugar para dar essa maior segurança para o sujeito, para que ele tenha a garantia de que ele vai, como eu posso dizer, receber um bom serviço, encontrar o que ele procurou naquele lugar, digamos assim.
Sauvagnat - Essa questão de como saber se recebemos um bom tratamento é uma questão com relação à qual, digamos, a verdadeira medicina tem muita dificuldade, ela com muito custo pode tentar responder. A verdadeira medicina tem realmente uma dificuldade para poder responder isso. Mas agora no que concerne, por exemplo, à psicopatologia ou à psiquiatria, a avaliação deve ser feita por gente que se conhece. Quem vai avaliar? Esse é o problema. Eles vão avaliar a partir de quais bases? Nós temos inúmeras maneiras de avaliar. Nós possuímos avaliações formais, por exemplo. Numa avaliação formal desse tipo a pessoa é interrogada segundo um manual de entrevista do DSM, e a pessoa então preenche os quadradinhos do DSM. O problema é que o DSM possui uma comorbidade que é enorme. Se você é autista, você tem oitenta chances sobre cem, para o autista, segundo o DSM, você tem ao menos três outros diagnósticos. Então, qual seria o verdadeiro? A avaliação formal, do meu ponto de vista, não vale muita coisa. A outra tradição é a avaliação entre colegas. Existe ainda outra tradição, uma terceira, que vai se repousar sobre o testemunho do paciente. E essa é a tradição psicanalítica lacaniana. Na tradição psicanalítica lacaniana começa-se por se fazer o mesmo, sua própria análise, pra ver se somos capazes de receber o fantasma de outra pessoa. Depois disso, a gente tem que prestar contas disso às outras pessoas. É a segurança máxima. Pra mim, isso manifesta que não existe nenhum processo contra analistas de diversas associações. É um indicador entre outros. Mas, o fato de que não existiria um tratamento objetivamente melhor que os outros é uma ideia que não pode ter sequência. Porque alguns vão preferir a meditação transcendental. Isso não coloca nenhum problema. Mas porque assim? É porque falamos da intimidade. Não é simplesmente essa intimidade, digamos, na qual o médico vai apalpar, tocar o corpo do outro. Não é essa intimidade, como, por exemplo, a do médico, que vai dar medicamentos, mas uma intimidade que concerne a confidência dos seus fantasmas. Os fantasmas mais íntimos. A partir daí é muito difícil de generalizar um tratamento do fantasma. É mesmo impossível. Um exemplo é a teoria lacaniana da feminilidade. Essa teoria diz que em toda mulher, encontraremos uma tendência mística. Mística como no caso das místicas religiosas. Significa que se você pegar uma menina de doze anos, ela vai contar alguma coisa dessa ordem, ao menos segundo a literatura lacaniana. Eu conheço pouquíssimas pessoas insatisfeitas com essa teoria, que vem substituir a teoria freudiana da inveja do pênis. Essa teoria, ela não disse que existirá, com respeito ao fantasma, uma solução generalizada pra todos, mas que uma vez posta a questão com respeito ao fantasma, cada um terá que encontrar sua solução singular. Mas diz que essa dimensão vai existir para todos. Não vai dizer “vá à missa, ou vá escolher uma religião”, de nenhuma maneira. Ao mesmo tempo podemos propor elementos teóricos que são gerais, mas que justamente permitam soluções extremamente pessoais. A questão do risco, o ponto de vista do risco, ele é cada vez mais importante, eu acho, por causa dessas novas tecnologias. É o que nos faz, cada vez mais, pensar sobre a questão do risco. É preciso lembrar que a psicanálise, justamente ela, não propõe o uso de nenhuma nova tecnologia, videoconferência, por exemplo.
Pergunta - A discussão nossa tem um tom político, seria bastante útil se nós pensarmos as classificações psiquiátricas como produtos culturais. Nessa via, a gente percebe que as tensões entre as classificações que usavam conceitos filosóficos ou psicanalíticos, a psiquiatria fenomenológica, ou a psiquiatria psicodinâmica, elas foram desaparecendo. E a tese de uma pesquisa que nós temos feito é que o DSM surge como o grande “esperanto psicopatológico”. É como se essas tensões que faziam surgir as figuras de compromisso entre a psiquiatria e a filosofia, ou a psiquiatria e a psicanálise, elas fossem desaparecendo, elas ficassem caladas. Nós acreditamos que esse é o maior malefício que essa classificação causa. É um silenciamento de outras formas, é um silenciamento da possibilidade de expressão de outras formas de mal-estar na cultura. O efeito colateral que nós percebemos é que nós não sabemos mais se o DSM classifica o que é visto ou se ele cria os tipos que ele pretende classificar. Um exemplo, não sei como que a gente pode falar isso, mas são os filmes, os personagens de filmes, como muitas vezes a tipologia vem da classificação. No cinema americano. No cinema de massa. “Melhor impossível”, por exemplo. E na formação dos profissionais, nas matrizes curriculares, muitas vezes nós temos uma associação intrínseca de que psicopatologia é igual à DSM.
Sauvagnat - Há uma maldição, efetivamente. É necessário comparar as coisas. Essas pessoas se pretendem neo-kraepelinianas. Eu trabalhei já muito sobre a psiquiatria alemã. No final do século XIX, início do século XX, qual foi o sucesso de Kraepelin? Kraepelin foi alguém que, sobretudo, tentou por em ordem, organizar a psiquiatria, a partir das pesquisas que existiam. Nós não podemos dizer isso do DSM. O grupo ligado a eles, de avaliação, um grupo étnico, um grupo nacional étnico etc. O problema deles é responder as objeções que lhe são feitas, ao mesmo tempo em que é financiada pela indústria farmacêutica. Se de um lado você tem clínicos que dizem “porque vocês não fazem o seu trabalho?” Do outro lado você tem a indústria farmacêutica que diz a eles, eu não ouso dizer o que diz a indústria farmacêutica. É questão de dinheiro. Uma questão de dinheiro, de favores comerciais. Em certo momento, falaram a eles, que eles deveriam se declarar, por exemplo, se eram independentes. Nenhum deles declarou ser independente. Pediram a eles para dar uma declaração de dependência ou independência com respeito à indústria farmacêutica, e foi confirmado que todos receberam dinheiro da indústria farmacêutica. Que legitimidade então têm essas pessoas? Elas não possuem nenhuma legitimidade. Não é razoável, então, de seguir a opinião de pessoas que não possuem nenhuma legitimidade. Seria criminal de ensinar isso a futuros psicólogos. Me parece. Eu não quero ser um criminoso. Mas cada um faz como quiser. Eu não sinto nenhuma legitimidade. E com respeito a esses médicos, que possuem esses sentimentos, é necessário lembrar a eles do que se trata. Aliás, lendo Spitzer, que foi quem escreveu o DSM IV e que publicamente acusa Kupfer de ser financiado pela indústria farmacêutica. Eu não sou um terrorista. Eu simplesmente li o que está publicado na internet. Eu não conheço nem Kupfer, nem Spitzer, mas eu vejo que eles escrevem na imprensa. Isso impõe de não utilizar essas categorias como categorias psicopatológicas. O fato que o cinema americano as utilize, não é um argumento. Não pode de nenhuma maneira ser apresentado como um argumento. Em último argumento, que seria aquele da eficácia da medicina americana com respeito ao tratamento, seria melhor ir diretamente ao Marrocos. Inclusive, muitas pessoas vão ao Marrocos. Existem clínicas que são muito conhecidas e financeiramente muito interessantes. Mas eu não tenho, que fique claro, nenhum interesse financeiro nesses assuntos.
Tradução: Maurício D’Escragnolle, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.
Transcrição: Rodrigo Afonso Nogueira Santos, aluno do 7º período do curso de Psicologia Integral, da Universidade Federal de São João del-Rei. Bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq/ UFSJ.
Critical considerations about the DSM classification and its implications for contemporary diagnostic
Considérations critiques sur la classification du DSM et de ses implications pour les contemporains de diagnostic
Consideraciones críticas acerca de la clasificación DSM y sus implicaciones para diagnóstico contemporáneo
François Sauvagnat*
Professor Catedrático de Psicopatologia da Universidade Rennes-II. Doutor em Psicanálise pela Universidade Paris VIII. (Paris, Fr.) f.sauvagnat@wanadoo.fr
1 Conferência proferida no campus Dom Bosco da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) em maio de 2012 na Etapa Brasileira do Movimento Internacional Stop/DSM. O evento, de caráter interinstitucional, foi organizado pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise (NUPEP) da UFSJ em parceria com o grupo de pesquisa Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP) da Universidade de São Paulo (USP).