Retorno sobre a influência de Saussure sobre Lacan


Maurício José d’Escragnolle Cardoso*


Resumo


Muito já foi dito acerca das relações entre a psicanálise de orientação lacaniana e a linguística estrutural oriunda de Saussure e de Jakobson. No entanto, tais comentários acerca dessa relação são marcados por preconceitos e desconhecimentos. Partindo da análise de alguns exemplos de críticas feitas a Lacan acerca de seu uso da linguística estrutural, o artigo visa pôr em relevo alguns elementos do percurso de Lacan que permitiriam outra interpretação de seu diálogo com Saussure. Uma interpretação não mais baseada sobre o elemento significante, mas sobre a questão global do valor do signo linguístico.


Palavras-chave: Lacan; Saussure; signo; valor.



Muito já foi dito acerca das relações entre a psicanálise de orientação lacaniana e a linguística estrutural oriunda de Saussure e de Jakobson. No entanto, como observa Arrivé:


A paisagem oferecida pelas relações entre lingüística e psicanálise […] não é realmente tranqüila. Tentar descrever esta paisagem é ir de surpresa em surpresa: é constatar alternativamente os contatos mais íntimos entre as duas disciplinas e os desconhecimentos recíprocos os mais completos, mesmo os mais depreciáveis (Arrivé, 1994, p. 11).


Os exemplos desses “desconhecimentos” evocados por Michel Arrivé são facilmente encontrados tanto na literatura psicanalítica de orientação lacaniana quanto na linguística saussuriana. Eles são devidos, como observa Arrivé, não a um simples desconhecimento de que existam relações teóricas tradicionais entre as duas disciplinas, mas são, sobretudo, fruto de uma tomada de posição, um julgamento, mesmo se às vezes implícito e não admitido, de que essas relações são superficiais, questionáveis ou mesmo injustificadas.


É assim que um autor como André Green é capaz de afirmar que a teoria lacaniana do inconsciente, marcada pela importação de conceitos de origem saussuriana, era “mais que discutível e que a referência que deveria ser encontrada em lingüística capaz de fazer uma ponte com a psicanálise escapava às teorizações passadas e estava ainda por vir” (Green, 2007, p. 1461).


Semelhante julgamento é extremamente representativo de certa apreciação, bastante difundida nos meios analíticos, a propósito da articulação teórica existente entre Lacan e Saussure e, de um modo geral, da associação entre linguística estrutural e psicanálise. Tal ponto de vista participa da ideia segundo a qual haveria na teoria psicanalítica um objeto - o inconsciente - que permanece fora do domínio da linguagem e que somente poderia ser abordado através de Saussure com a condição de adotarmos, com respeito à sua linguística, uma forma de reducionismo positivista próxima do cientificismo (que Green justamente imputa à Lacan).


Com efeito, segundo Green, o uso lacaniano de Saussure seria caracterizado pela “colocação à parte do afeto” (Green, 2007, p. 1461). O afeto, representante psíquico não-ideativo das pulsões, representa para Green o protótipo mesmo do que resta fora da linguagem. Assim, o problema, segundo ele, se situa na incapacidade de Lacan dar conta das “relações do linguageiro com o pulsional”, mais precisamente da “relação da linguagem a isso que não faz parte dela” (Green, 2007, p. 1463). Essa incapacidade de abordar corretamente o pulsional “fora-da-linguagem” seria a consequência do fato de Lacan “[…], estar cegado por sua paixão cientificista que buscava englobar o inconsciente” (Green, 2007, p. 1463). Desde então, Green considera que Lacan privilegiou a dimensão lógico-gramatical da obra de Saussure, aquela que permitiria uma abordagem sintáxica do funcionamento do aparelho psíquico. Entretanto, tal dimensão, segundo Green, oporia-se a outra, igualmente presente na obra de Saussure, de ordem retórico-hermenêutica, e muito mais pertinente para a perspectiva psicanalítica.


Uma posição como a de Green atesta de uma desconfiança com respeito a esse tipo comum de tentativa, característica marcante de orientações logicistas, de “dissolver na língua as particularidades de todos os registros fora-da-linguagem da psyché” (Green, 2002, p. 273). Esses “registros fora-da-linguagem” presentes no interior do psiquismo (que as doutrinas formalistas tentariam reduzir ao puro jogo de formas sintáxicas vazias e tautológicas) e dos quais o afeto seria um dos seus representantes, concerniriam à economia pulsional do inconsciente. Desse ponto de vista, Lacan haveria se desviado da verdadeira orientação freudiana em função de seu gosto pronunciado pelo formalismo lógico.


Entretanto, Green não refuta completamente a utilidade global da teoria saussuriana para a psicanálise, mas somente aquela oriunda de desdobramentos estruturalistas. Ele considera que a obra de Saussure, enquanto tal, não autoriza ela-mesma o uso lacaniano de seus conceitos, o qual põe seu acento por um lado em seu aspecto formal e, por outro, na exclusão de todo recurso a elementos extralinguísticos. Segundo Green, “Lacan subestimou o papel que Saussure concedia ao Valor como algo de bem diferente do significado. Saussure ele mesmo se interrogou sobre um fora-da-linguagem” (Green, 2002, p. 276).


Ora, se cremos no argumento de Green, seria teoricamente conveniente preservar a referência a algo extralinguístico - e, segundo ele, Saussure já havia pressentido tal possibilidade através de sua teoria do valor1 - para chegar, enfim, a um diálogo verdadeiro com a psicanálise. Green busca a partir daí outra orientação linguística que seja susceptível de conjugar uma perspectiva hermenêutica e essa dimensão do psiquismo que permaneceria fora da linguagem (e cujo exemplo maior seria dado pelo afeto). Tal proposta marca uma característica fundamental da leitura freudiana de Green após sua cisão com o movimento lacaniano.


Por causa dessa leitura do que seja a economia pulsional e na qual ela se inscreveria fora da linguagem, Green considera que uma referência teórica mais adequada para a psicanálise figuraria na semiótica peirciana. Segundo Green, levar em consideração o extralinguístico no fundamento do valor, “é isso que faz C.S. Peirce” (Green, 2002, p. 276)2.


Outro exemplo desse mesmo tipo de interpretação nos é fornecido pelo trabalho de Costes (2003). Apesar de certas diferenças, as coordenadas do problema são as mesmas. Segundo o autor, de um lado, Lacan propôs, seguidamente, uma má interpretação do estatuto da linguagem no psiquismo, fez um grave desuso da linguística saussuriana e, finalmente, não preservou o lugar do fora da linguagem no psiquismo. Por outro lado, Costes também sinaliza que a linguística estrutural, ela mesma, não é a teoria linguística mais apropriada à psicanálise. Para ele, essa inadequação é devida à sua dificuldade intrínseca de tratar certos aspectos do psiquismo externos à linguagem, cujo exemplo maior é justamente a dimensão econômica, pulsional e afetiva do inconsciente.


Assim, Costes (2003) considera que em inúmeros textos, Freud situa o lugar da linguagem no pré-consciente e não no inconsciente. Dessa maneira, “se Lacan tivesse levado à sério estes inúmeros textos freudianos […], seria toda a sua teoria lingüístico-psicanalítica que desmoronaria em um instante” (Costes, 2003, p. 41). Costes compartilha com Green a ideia de que o inconsciente implica elementos “extralinguísticos”, cuja natureza é mais que sexual, é pré-sexual (Costes, 2003, p. 209). Além disso, ainda segundo Costes, “por um lado, é notório que a maior parte dos linguistas refutou a quase totalidade das asserções de Lacan. Enfim, a abordagem lacaniana da lingüística buscava ainda ser psicanalítica, o que implicava derivas conceituais inevitáveis” (Costes, 2003, p. 47). Dito de outra maneira, não somente o uso lacaniano de Saussure não teria sentido do ponto de vista da própria linguística, mas ele se revelaria igualmente completamente inadequado à teoria de Freud e às necessidades da psicanálise. Entretanto, para o autor, não se trata de um problema relativo somente à Lacan. A inadequação seria devida também à própria escolha de Lacan pela linguística saussuriana. Esta, incompatível com o objeto psicanalítico, implicaria ela mesma “a incontornável contradição na qual nos aferramos a partir do momento em que não abrimos mão de falar do inconsciente freudiano em termos lingüísticos” (Costes, 2003, p. 53).


A conclusão de Costes é então que “a linguagem é um dado fundamental para o homem: ninguém duvida. E, no entanto, ela é determinante para o inconsciente? Já é isso menos certo”. Assim, para Costes, “decididamente, […] não é a linguagem que caracteriza melhor o inconsciente - ao menos, o inconsciente freudiano” (Costes, 2003, p. 54).


É necessário admitir que Costes não se engana quando se trata da ideia que certos linguistas fazem da transposição lacaniana da teoria saussuriana. Efetivamente, segundo, por exemplo, linguistas eminentes como Harris e Mounin, o percurso lacaniano seria caracterizado pela falta de consistência teórica, se olhado do ponto de vista da ciência da linguagem. Dito de outra maneira, segundo eles, a tradição linguística não autoriza o uso que Lacan se permite com respeito aos conceitos provenientes de Saussure. Mais ainda, a orientação lacaniana, do fato mesmo desse tipo de empréstimo linguístico, seria desprovida de sentido.


Harris, por exemplo, considera que “as proposições de Lacan sobre a linguística não são nem claras nem consistentes” (Harris, 2003, p. 116). Dessa maneira, nas breves passagens consagradas à Lacan em seu trabalho acerca dos intérpretes de Saussure, o autor coloca em evidência não somente as imprecisões do psicanalista francês quando ele busca assinalar a origem saussuriana de seus próprios conceitos, mas também a dificuldade que possuímos ao tentarmos compreender o uso que ele faria. Harris dá como um dos seus exemplos, podemos citar, o lugar ambivalente que ocuparia a linguística no ensino de Lacan. Para Harris:


Ele [Lacan] às vezes escreve como se ele considerasse a lingüística como uma ciência piloto nas tentativas modernas para compreendermos o comportamento humano. […] Em outros momentos, Lacan parece ser mais cético com respeito ao papel da lingüística (Harris, 2003, p. 117).


Harris isola a questão da definição do conceito de significante no aparelho teórico lacaniano e se interroga então sobre a proposição consequente, segundo a qual “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Harris observa que as informações que Lacan fornece são insuficientes para compreendermos o uso desses conceitos e assim “o paralelo estrutural ele mesmo se torna não somente fraco mais também obscuro” (Harris, 2003, p. 118). Permanecem apenas, segundo Harris, questões abertas com respeito às relações entre as duas disciplinas, e questões elas mesmas mal colocadas: “as respostas a estas questões, e mesmo somente o esboço de tais questões, faltam dos escritos de Lacan” (Harris, 2003, p. 118).


Georges Mounin constitui o exemplo mais célebre desse tipo de crítica proveniente da linguística. Pensamos aqui em seu famoso artigo sobre o estilo de Lacan (Mounin, 1970). Segundo o linguista, Lacan somente compreende Saussure de maneira “bastante aproximada” (Mounin, 1970, p. 183). Por causa disso, os empréstimos de Lacan da linguística saussuriana seriam apenas simples analogias verbais e essa referência seria consequentemente enganosa. Logo, a propósito de uma passagem de instância da letra no inconsciente, na qual Lacan busca explicitar seu uso do signo linguístico, Mounin afirma: “todo lingüista e mesmo todo simples leitor de Saussure apreciará esta enxurrada de absurdos” (Mounin, 1970, p. 186). Assim, ainda segundo Mounin, em 1957, “Lacan consagra à Saussure seu mais extenso desenvolvimento, que não testemunha de uma melhor compreensão que de suas primeiras referências doutrinais à Saussure, datadas de 1954” (Mounin, 1970, p. 186). O texto do psicanalista somente demonstraria “a incompreensão da qual testemunha Lacan com respeito ao pensamento de Saussure” (Mounin, 1970, p. 186). Mais precisamente, a obra de Lacan somente mostraria “absurdos pseudo-lingüísticos” (Mounin, 1970, p. 185).


Da mesma maneira que Harris, Mounin estima que o emprego lacaniano dos termos e conceitos linguísticos não é nem autorizado por Saussure nem justificado por Lacan. E somente se trataria de um puro “decalque terminológico” que nada contribui à elaboração analítica (Mounin, 1970, p. 188).


Mas Mounin não critica apenas a interpretação e o uso que Lacan faz de Saussure. O linguista percebe também, de maneira bastante justa, a importância de temas hegelianos e marxianos na elaboração de Lacan. Entretanto, Mounin considera que, da mesma maneira que com respeito à Saussure, a apropriação lacaniana de conceitos dialéticos e materialistas não é nem consistente nem teoricamente fundamentada. Tratar-se-ia mais de algo a ser tomado como sendo da ordem de uma “coloração estilística”, unicamente justificada pelo contexto intelectual da época. Como Mounin assinala, “estamos, sobretudo, diante de uma tintura de época, muito mais que diante de uma coloração sólida” (Mounin, 1970, p. 184). Assim, o emprego desses conceitos não reveste de “valor especificamente nem hegeliano, nem marxista, mesmo escoltado das ocorrências de materialismo ou materialismo histórico” (Mounin, 1970, p. 188). Esse uso, critica Mounin, se reduz então a formas estereotipadas ou condenadas à redundância.


Tais críticas de ambos os lados fizeram história e se resumem em algumas ideias diretoras. Eis tais críticas em resumo:


Em primeiro lugar, tanto psicanalistas quanto linguistas estão de acordo em considerar que a leitura lacaniana de Saussure somente traduziria a incompreensão do projeto científico determinado pelo mestre suíço. Além disso, tal emprego de Lacan seria obscuro, inconsistente, e constituiria, enfim, um contrasenso com respeito ao programa saussuriano original.


Em segundo lugar, se existe um laço epistêmico associando as obras de Saussure e de Lacan, tal laço concerne unicamente à fonte saussuriana da teoria lacaniana do significante. Mais ainda, mesmo se o conceito de significante é central em ambas as teorias, ele não entretém mais nenhuma ligação com sua origem em Saussure, tamanha a sua distorção em Lacan.


Em terceiro lugar - lembremos a crítica de Harris que sublinha a ambivalência de Lacan com respeito à linguística –, a evolução do ensino de Lacan traria a marca do abandono progressivo da referência à linguística estrutural e de sua substituição progressiva por outros modelos provenientes das ciências formais, como, por exemplo, a lógica e as matemáticas. Assim, desse ponto de vista, apareceria legítimo afirmar que mesmo se houve em algum momento um diálogo entre Lacan e Saussure, tal aproximação somente seria válida em um período determinado de seu percurso.


Em quarto lugar, a teoria saussuriana é ela mesma e, nesse caso, independentemente da transposição de Lacan, uma teoria inadequada para abordar a questão inconsciente e de seus diversos aspectos econômicos e seus componentes extralinguísticos.


Sem dúvida, Lacan mesmo contribuiu a essa ausência de comunicação entre os partidários de ambas as disciplinas, seja em função de seu estilo discursivo, às vezes bastante obscuro, seja por causa do tratamento que ele realizou nos conceitos tomados de empréstimo. Sabemos bem o quanto a obra lacaniana está distante de ser transparente ou homogênea. Além disso, ela esteve sempre em constante evolução, retrabalhada incessantemente e sempre marcada pelo diálogo com inúmeras disciplinas. Evidentemente, tais características não tornam a tarefa do intérprete mais fácil.


De toda maneira, a incompreensão já está instalada. Trata-se de uma situação, em nosso ver, bastante deplorável. Cremos que a reflexão psicanalítica teria muito a ganhar se alimentando das ciências da linguagem, da mesma forma que a linguística poderia nela encontrar novas problemáticas até então não postuladas. Por outro lado, se comparamos a linguística estrutural com outras correntes, como a linguística gerativa ou as disciplinas derivadas da doutrina chomskyana (como a semântica cognitiva), o modelo saussuriano ainda fornece a melhor opção para pensarmos um conceito de sujeito em nossos dias de naturalização do espírito.


Nós consideramos que o ensino de Lacan, sobretudo se acompanhado em toda a sua extensão, permite uma série de considerações que caminham no sentido exatamente inverso das críticas anteriormente elencadas:

Primeiramente, o percurso de Lacan sugere a defesa da existência de uma ligação mais estreita e consistente entre o projeto psicanalítico e o de Saussure que aquela postulada pelos autores repertoriados. Esse elo ultrapassaria a simples transposição e adaptação do conceito de significante às necessidades da psicanálise.


Nesse sentido, a influência de Saussure sobre o ensino de Lacan seria mais profunda e poderia ser percebida como o desdobramento mesmo da orientação epistêmica implicada no projeto lacaniano de retorno à Freud. Lacan repetiria, do ponto de vista epistemológico, o mesmo passo que foi realizado por Saussure no momento em que funda a linguística contemporânea. Dito de outra maneira, deveríamos compreender os projetos de Saussure e de Lacan a partir de uma dupla recusa: tanto de uma orientação romântico-hermenêutica quanto de uma perspectiva positivista-causalista com respeito às relações entre pensamento e linguagem.


A semelhança epistemológica demonstra essa dupla recusa de maneira bastante específica: os projetos de Saussure e Lacan seriam caracterizados pela redefinição das relações entre psicologia e linguística e entre o psiquismo e a linguagem a partir da postulação de uma ordem simbólica terceira, materialmente irredutível tanto à interioridade da vivência subjetiva quanto à exterioridade da realidade empírica.


Assim, da mesma maneira que para o linguista genebrino refundar a linguística implicava uma refundação do campo psicológico enquanto tal, o projeto lacaniano buscava redefinir as coordenadas que orientavam o campo psicanalítico, naquele momento, muito marcadas seja pelo psicologismo da psicologia do Ego, seja pelo sociologismo dos revisionistas. Em todo caso, a refundação lacaniana do campo analítico pode justamente ser definida em função do impacto da doutrina saussuriana sobre o modo como podemos entender o que seja a atividade do inconsciente.


Em segundo lugar, estimamos que a influência de Saussure sobre Lacan não pode de maneira alguma ser reduzida somente à teoria do significante. Ao contrário, ela diria respeito a uma teoria global do valor do signo. Seria a partir dessa teoria do valor, levando em consideração justamente a questão do signo, que seria necessário julgar a importância de Saussure para a totalidade do percurso lacaniano. Assim, se a ênfase é posta sobre a questão global da determinação do valor, a teoria do significante é indissociável, no ensino de Lacan, de um importante lugar dedicado à noção de signo.


Tal hipótese se verifica facilmente na obra de Lacan. Quanto mais uma abordagem formalista do significante se desenvolve, mas encontramos igualmente o refinamento de uma teoria do signo, do objeto e do sintoma. Figurariam assim, na elaboração de Lacan, não somente o conceito de significante proveniente de Saussure, mas também uma noção de função sígnica vinda da linguística estrutural. Observemos que não se trata de afirmar que Lacan emprega um conceito de signo portador de um conteúdo inteiramente análogo àquele que encontramos em Saussure. Isso não se aplicaria nem mesmo no caso da teoria do significante. Mas, haveria indícios suficientes em sua elaboração para considerar que nós podemos encontrar em Lacan um conceito de signo, tomado de Saussure e igualmente adaptado ao campo da psicanálise. Dessa maneira, seria possível explicitar a existência de um conceito de signo em Lacan de origem saussuriana desde que seja empregada uma grade materialista de leitura de sua obra (a qual permite uma interpretação não empirista do signo).


Mais ainda, consideramos que uma das características mais marcantes de Lacan reside na importância cada vez maior que reveste a seus olhos o conceito de signo. Tal conceito, então de inspiração saussuriana, designaria precisamente o esforço de Lacan em dar conta da dimensão econômica do funcionamento mental e justamente em sua dependência da linguagem. A noção de signo servirá assim para uma concepção de economia pulsional inteiramente dependente da linguagem - e, logo, de nenhuma maneira, como indicando algo de ordem extralinguística.


Dessa maneira, talvez seja ainda mais correto afirmar que Lacan se torna progressivamente cada vez mais saussuriano e, sobretudo, ali onde ele mesmo parece indicar estar se afastando da linguística estrutural. Ou seja, mesmo quando Lacan abandona o diálogo privilegiado com o saussurismo em prol de uma aproximação com as disciplinas lógicas (como o logicismo de Frege e Russell), tal movimento deve ser interpretado como uma radicalização do que já estava presente na própria orientação estruturalista. Assim, de que maneira podemos justificar tal proposição tão na contramão do que poderíamos chamar de leitura standard do percurso lacaniano?


Uma das mais importantes inovações da linguística saussuriana consiste na presença, no interior de sua teoria do valor, de uma definição do signo linguístico como um objeto sensível suprasensível (muito semelhante à definição marxiana da mercadoria como indica o sintagma). Mais precisamente, o signo, entidade feita de uma dualidade constitutiva, compõe o substrato da única forma possível de positividade no seio de um sistema baseado em diferenças. É justamente nisso que Saussure se distingue de todos os outros modelos linguísticos em vigência no final do século XIX. A dualidade do signo em Saussure, postulando a anterioridade lógica da relação sobre os termos, rompia com o dualismo metafísico vigente na época, presente nesses dois principais modelos relativos à linguagem: o positivismo e o hermenêutico.


É na mesma direção que se desdobra a obra de Lacan como assinala a temática do Um (l’Un), entendido como a única forma de positividade imanente a um sistema de diferenças. É justamente na articulação da teoria do signo em Saussure com a teoria do Um, tão presente a partir do seminário XIX (1971/72), em Lacan, que podemos da melhor maneira situar aquilo que fornece a chave do problema em torno do qual gira a reflexão psicanalítica: o mistério da imbricação entre pulsão e linguagem.


Se tomarmos um período que vai do Seminário I (1953 [54]) ao Seminário XX (1972 [73]), por exemplo, podemos ver que Lacan atravessa quatro momentos distintos com respeito à sua compreensão desse elemento formado pela positividade da negação. Não é possível expor uma apresentação integral desses quatro momentos no âmbito de um artigo, mas podemos fornecer algumas balizas que permitam traçar seus esboços. Por um lado, tal elemento constitui sempre em cada um desses períodos o lugar-tenente do valor intrínseco à ordem da linguagem ao mesmo tempo em que representa o lugar da determinação da indeterminação no coração dos processos inconscientes. Em outras palavras, a reflexão lacaniana acerca do valor do signo, de seu lugar no seio de uma metapsicologia psicanalítica, foi uma constante em seu ensino, fornecendo uma das chaves para a compreensão de sua obra. Em cada uma das vezes que tal questão for tematizada, poderemos ver uma diferente maneira com a qual Lacan buscava conceitualizar como se dava a relação entre corpo e linguagem ou entre pulsão e estrutura.


Em um primeiro momento (de 1950 a 1956), vemos Lacan referir-se de maneira marcante a Heidegger. Tal momento é caracterizado por um duplo movimento da parte de Lacan, ao mesmo tempo uma relativização e um questionamento da influência da filosofia hegeliana, até então bastante importante e a introdução da chave estruturalista de leitura. O lugar da verdade é pensado como algo que resiste à expressão em uma linguagem objetivista e que assim somente pode ser reconhecido pelo sujeito em função de uma alteração no modo como ele se autoapreende na linguagem. Tal lugar da verdade comparece então de maneira negativa como resistência ao discurso positivo.


Em seguida, vemos Lacan embarcar na exploração das consequências da leitura estruturalista entre 1955 e 1960. A sistematização da teoria do significante e dos mecanismos do inconsciente, tais como a metáfora e a metonímia, implica como consequência igualmente determinar uma função essencial aos processos psíquicos, a qual dará origem ulteriormente à noção de objeto a. O objeto metonímico correlato da “falta-à-ser” do sujeito não passa de um limite interno à ordem simbólica ela mesma.


Em um terceiro momento, poderíamos encontrar uma reorientação interna ao próprio estruturalismo de Lacan. Podemos datá-la no interior de um período, estendendo-se entre 1960 a 1966. Naquele momento, localizável no âmbito do seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan introduziu concretamente o conceito de signo, emprestado de Peirce. Tal conceito surge justamente no momento em que Lacan se interrogou sobre o estatuto dos fenômenos psíquicos que pareciam resistir à elaboração pelo significante. Tratava-se também de um momento no qual Lacan se perguntou sobre o valor da negação e seu lugar no seio dos processos metapsicológicos. Retornando à Freud mais uma vez, Lacan visa nesses fenômenos índices dos processos mais propriamente econômicos do aparelho psíquico. No segundo retorno à Freud, veríamos assim uma tentativa de Lacan elaborar como se articulam a determinação estrutural e aquilo que encarna o excesso pulsional, sob a figura de das Ding.


O quarto momento concerne às consequências da fase anterior, na qual o signo assinala uma sobreposição, uma porosidade, entre o sistema simbólico e a economia pulsional. Esse período se concentra entre 1965 a 1973. A utilização do conceito de signo conduz Lacan a formular os conceitos de traço unário e de nome próprio. Lacan trabalhava então em paralelo às obras de Freud e àquelas de Frege e de Russell, interpretando o conceito de identificação ao traço a partir do debate logicista existente em torno do nome próprio.


Levantando essa questão, Lacan propõe então reinterpretar a problemática do traço unário (na medida em que este faz apelo ao conceito freudiano de Ideal do Eu, o que reforçaria a alienação do sujeito ao Outro) através da noção de Um, a ser entendido como o modo de determinar o destino do “objeto a” para além do fantasma. O Um é finalmente definido como aquilo que inscreve no psiquismo a inércia da repetição pulsional, aquilo que Lacan determina como a insistência da mesmidade.


É nesse sentido que uma mesma matriz concernente ao problema do valor, a ser entendido como insistência da mesmidade pulsional, pode ser encontrada igualmente em Lacan e, cabe ressaltar, no interior justamente de uma discussão realizada com Saussure. Como dissemos, o problema que Lacan tentou esclarecer e que orientou sua leitura da questão do valor concerne o modo de articulação entre a estrutura simbólica inconsciente (o grande Outro) e o registro econômico das pulsões. Como explicitar, do ponto de vista metapsicológico, a imbricação constitutiva existente entre pulsão e linguagem?


Assim sendo, por um lado, o signo, segundo Lacan, não seria outra coisa que a determinação de uma indeterminação, da qual os outros signos definiriam os contornos. Dito de outra maneira, o fato do valor não se reduzir à significação em Saussure permite assim a Lacan considerar que os elementos do discurso constituem uma borda semântica, girando sempre em torno do fato de nenhum elemento simbólico poder significar a si mesmo. Por outro lado, essa característica do signo de ser a coordenada específica de uma indeterminação permite a Lacan igualmente privilegiar a possibilidade de uma interpretação do signo como um objeto sensível suprassensível, como a positividade de uma impossibilidade. Esse paradoxo significante nos dá a entender a substancialização do signo como uma forma de paralogismo inerente à linguagem ela mesma, que fetichizaria o estatuto negativo da forma-valor significante sob a forma de seu oposto, ou seja, de uma substância independente.


É por isso que para Lacan, Saussure é capaz de isolar a presença de um antagonismo inerente à ordem da linguagem e que ele propõe interpretar como a própria divisão do sujeito, fundamento do pensamento freudiano. Nesse sentido, ele considerava igualmente que toda substância (no caso, o objeto pulsional) depende de um ato de subjetivação desse limite intra-simbólico que fetichiza o valor e exterioriza de maneira substantiva a indeterminação significante.


Em outras palavras, Lacan nunca cessou de buscar a existência de uma forma de positividade unicamente simbólica que inscreva a presença do insensato no coração do sentido. É isso que testemunham os sucessivos conceitos lacanianos do objeto pulsional: objeto metonímico, falta-a-ser, Coisa, objeto a, e finalmente signo propriamente dito. O conceito lacaniano desse objeto pulsional é, assim, o de um resto incompreensível exteriorizado, correlato direto do vazio que define o sujeito como pura atividade simbólica. Ele se manifesta no universo psíquico do sujeito exatamente como um objeto sensível suprassensível, isto é, como algo que recai e não recai sob os nossos sentidos, como a propriedade enigmática de uma entidade qualquer. Ele situa, assim, essa substancialização da indeterminação inerente ao valor, face significante irredutível à significação, como o fundamento simbólico das pulsões.


O conceito lacaniano mais conhecido para designar esse resíduo determinado da indeterminação é aquele de “real”, a própria substância do impossível, atualizada e exteriorizada sob a forma de seu oposto. Para além do Ego, para além da consciência subjetiva, encontraríamos então o estatuto “real” do sujeito em psicanálise, nada mais que essa identidade especulativa entre o vazio da indeterminação do significante e a substância pulsional incarnada desse próprio limite simbólico.


Para terminar, gostaríamos de assinalar que não pretendemos com este pequeno percurso sugerir que não existem diferenças entre o pensamento desses autores ou que podemos reduzir um ao outro, mas simplesmente que possuem uma lógica mínima comum que nos autoriza uma série de analogias formais.


Referências


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Mounin, G. (1970). Quelques traits du style de Jacques Lacan. In G. Mounin Introduction à la sémiologie. Paris : Éditions de Minuit.


RETURN ON SAUSSURE’S INFLUENCE ON LACAN


Abstract


Much has been said about the relationship between Lacanian psychoanalysis and structural linguistics deriving from Saussure and Jakobson. However, such comments about this relationship are marked by prejudice and unknowns. Based on the analysis of some examples of criticisms of Lacan about their use of structural linguistics, this paper seeks to highlight some elements of the course of Lacan that would allow a different interpretation of its dialogue with Saussure. An interpretation based on no more the significant element, but on the whole question of the value of the linguistic sign.


Keywords: Lacan; Saussure; sign; value.


RETOUR SUR L’INFLUENCE DE SAUSSURE SUR LACAN


Résumé


Beaucoup a été déjà dit à propos des rapports entre la psychanalyse lacanienne et la linguistique structurale provenant de Saussure et Jakobson. Cependant, les commentaires à propos de cette relation sont marqués par des préjugés et méconnaissances. En partant de l’analyse de quelques exemples de critiques faites à Lacan de son usage de la linguistique structurale, l’article vise mettre en relief certains éléments du parcours de Lacan que permettrait une autre interprétation de son dialogue avec Saussure. Une interprétation non plus soutenue par l’élément signifiant, mais sur la question globale de la valeur du signe linguistique.


Mots-clé: Lacan; Saussure; signe; valeur.


RETRONO DE LA INFLUENCIA DE SAUSSURE SOBRE LACAN


Resumen


Muchas cosas han sido dichas sobre las relaciones entre el psicoanálisis lacaniano y la lingüística estructural de Saussure y Jakobson. Sin embargo, los comentarios respecto de esta relación se encuentran llenos de prejuicios y desconocimiento. Partiendo del análisis de algunos ejemplos de críticas hechas a Lacan por su uso de la lingüística estructural, el artículo busca poner de relieve ciertos elementos del recorrido de Lacan que permitirían otra interpretación de su diálogo con Saussure. Una interpretación que no se sostiene más en el elemento significante, sino en la cuestión global del valor del signo lingüístico.


Palabras claves: Lacan; Saussure; signo, valor.


Recebido/Received: 19.6.2012/6.19.2012
Aceito/Accepted: 17.9.2012/9.17.2012


Maurício José d’Escragnolle Cardoso*
Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPR). (Curitiba, Paraná, Br.) escragnolle@hotmail.com


1 Green faz referência à polêmica pós-saussuriana em torno da noção de arbitrariedade do signo linguístico, e a E. Benveniste, cujo artigo, A natureza do signo linguístico, se encontrava no centro de tal polêmica. A questão se debruçava sobre o argumento saussuriano, presente no Curso de Linguística Geral, em prol do caráter arbitrário do signo, o qual fazia uso de um exemplo no qual a existência de um dado empírico (no exemplo uma vaca) servia de contraponto à existência de diversos vocábulos diferentes em diferentes línguas (como cow em inglês ou vache em francês) usados para designá-lo. Mesmo se Saussure, do ponto de vista de sua definição nocional, exclui para o signo toda referência a qualquer existente extralinguístico, seu exemplo voltava a incluir tal designação empírica para a caracterização do que seja a arbitrariedade do signo.
2 É precisamente uma tal leitura, baseada na teoria peirceana do signo, que Lacan interdita (mesmo utilizando-se abertamente de seu nome quando de suas referências ao signo, por exemplo, nos seminários VII - A ética da psicanálise - e XIX - Ou pior).