Apontamentos sobre o método na pesquisa psicanalítica


Daniel Menezes Coelho*


Marcus Vinicius Oliveira Santos**


Resumo


Este estudo tem como objetivo apresentar alguns apontamentos que entendemos ser de fundamental importância para nortear a realização de pesquisas com orientação psicanalítica. Cumpre ressaltar que o nosso maior interesse é formular uma defesa do método psicanalítico na produção de pesquisas, sobretudo aquelas de cunho eminentemente bibliográfico. Tomamos como ponto de partida a problematização da legitimidade de uma oposição entre uma psicanálise pura e outra aplicada - teoria e clínica -, mostrando que esse dualismo não pode ser sustentado pela psicanálise como se fossem compartimentos dissociados. Em seguida, buscamos caracterizar a especificidade do método psicanalítico pautado na escuta e na interpretação, dando ênfase à possibilidade de sua aplicação a outras situações que não a do consultório, desde que sejam mantidas as mesmas exigências provenientes da prática clínica. Doravante, procuramos destacar de que maneira a arbitrariedade na função do intérprete pode, ao mesmo tempo, constituir a limitação e a potência do método psicanalítico. Por fim, tentaremos apontar alguns direcionamentos para a pesquisa psicanalítica, sublinhando a relevância do trabalho das construções em análise e das especulações para o pesquisador.


Palavras-chave: Psicanálise; método; pesquisa.


1 A indissociabilidade entre teoria e clínica


Com o escopo de apresentarmos as principais particularidades da pesquisa com orientação psicanalítica, tomamos como ponto de partida uma indagação formulada por Birman (1994) no ensaio intitulado A direção da pesquisa psicanalítica: “[...] é possível pensar na existência da teoria psicanalítica na exterioridade da clínica, fundada na transferência?” (p. 13). Interessa-nos, a partir da reflexão do autor, problematizar a possibilidade de conceber a existência da pesquisa psicanalítica, sem levar em consideração as exigências fundamentais da experiência psicanalítica.


O questionamento supracitado aponta na direção de uma relevante interrogação sobre a qual pretendemos lançar alguns esclarecimentos: seria legítima a postulação de uma “psicanálise pura”, contrapondo-se a uma “psicanálise aplicada”? Ao contrário, o texto freudiano, por exemplo (Freud, 1912/1996c), afirma a indissociabilidade entre pesquisa e tratamento como característica inerente à psicanálise. Diante disso, conforme Birman (1994), a oposição entre a “pureza” das formulações teóricas e a “impureza” da prática clínica mostra-se, portanto, insustentável para a psicanálise.


Em outras palavras, a experiência psicanalítica compõe os alicerces para a pesquisa em psicanálise, fornecendo os eixos norteadores para o registro teórico, ainda que o estudo se realize em âmbito distanciado do setting estritamente analítico (“psicanálise extramuros”).


De acordo com Rosa (2004),


a psicanálise extramuros ou em extensão diz respeito a uma abordagem - por via da ética e das concepções da psicanálise - de problemáticas que envolvem uma prática psicanalítica que aborda o sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, e não estritamente ligado à situação do tratamento psicanalítico (p. 331).


Com efeito, foram os impasses indicados pela experiência analítica que levaram Freud às inúmeras reformulações em seus enunciados teóricos, assim como a uma reconhecida leitura e interpretação (no sentido psicanalítico do termo) da cultura. Não obstante, autores - como, por exemplo, Frangiotti (2003) - insistem em considerar a metapsicologia como um construto teórico estanque em relação à atividade clínica, sobre o qual se poderiam propor regramentos a partir de critérios outros que não os clínicos (a partir da filosofia ou da ciência, por exemplo). Tais leituras recaem, via de regra, no apontamento de inconsistências da teoria da psicanálise. A isso, replicamos que tal inconsistência tem uma vertente positiva, ligada à própria experiência do inconsciente, mas também especialmente no que tange a essa discussão, uma vertente negativa, ligada à própria escansão operada por tais autores entre o que propõe a teoria, a prática da qual ela advém e com a qual se articula.


A questão que se coloca é saber qual a finalidade desse esforço de dissociação entre os registros da teoria e da clínica a despeito das advertências enunciadas por Freud. O intuito de Frangiotti (2003) é defender a legitimidade de uma epistemologia da psicanálise, cuja incidência coloca-se unicamente “sobre os modelos teóricos encontrados na parte metapsicológica da psicanálise, investigando a coerência, a consistência e a força explicativa dos modelos propostos” (p. 65). Em seguida, o autor assevera peremptoriamente que a epistemologia não se interessa por avaliar a prática clínica na medida em que tal questão extrapola a competência do epistemólogo.


Decerto, tomando como base a argumentação de que a oposição entre psicanálise pura e psicanálise aplicada mostra-se insustentável para a psicanálise, cumpre sublinhar que o “metapsicólogo” é, antes de tudo, um analista. Conforme aponta Lo Bianco (2003), os procedimentos investigativos da psicanálise têm na clínica a sua principal referência de apoio. De tal forma, o objeto da psicanálise, o inconsciente, somente pode ser apreendido à luz do campo da experiência analítica. Trata-se, pois, de compreender quais ferramentas deixadas por Freud possibilitam a realização de estudos pautados no método psicanalítico na medida em que pretendemos sublinhar algumas de suas contribuições para a realização de pesquisas, sobretudo aquelas cujo objeto extrapola o que comumente entendemos como clínica, ou seja, que extrapola a atividade de consultório. Nossa questão, então, é a seguinte: é possível extrapolar os limites do consultório sem perder a especificidade do método de investigação da psicanálise?


2 Da especificidade do método psicanalítico


O que caracteriza a especificidade do método da psicanálise, levando-se em conta a univocidade de sua aplicação no interior e no exterior do setting analítico? Antes de tentarmos elucidar essa questão, é mister destacar que, por um lado, a psicanálise não se identifica a um “exercício virtuoso de uma técnica” (Birman, 1994, p. 27), na medida em que esta apresenta grande variabilidade, o que exige sempre uma espécie de partida do zero. Ora, os pilares da técnica analítica - associação livre e escuta flutuante - indicam praticamente uma ausência de procedimentos, antes que um corpo técnico que se preste ao virtuosismo. Por outro lado, devemos considerar que o método psicanalítico, ao contrário do que possa parecer, pelo que chamamos de ausência de procedimentos, tem sua rigorosidade apoiada exatamente nos pilares da fala (associação livre) e da escuta (flutuante) e regulada pelo impacto transferencial. Tal rigorosidade, no entanto, implica num deslocamento do lugar do saber (que está sempre com aquele que fala, ainda que ele não saiba nada sobre isso), portanto, numa relação de dependência do que se produz como saber teórico ao que se coloca como saber daquele que fala (ou seja, à própria experiência do inconsciente). Segundo Rosa (2004),


[...] o método é a escuta e interpretação do sujeito do desejo, em que o saber está no sujeito, um saber que ele não sabe que tem e que se produz na relação que será chamada de transferencial. [...] O método psicanalítico vai do fenômeno ao conceito, e constrói uma metapsicologia não isolada, mas fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a interpretação, a teoria por si só, mas integra teoria, prática e pesquisa (p. 341).


Vale dizer que a escuta e a atividade interpretativa, enquanto método próprio à psicanálise, não se restringem à situação de análise. Se, conforme enunciamos, reconhecermos a indissociabilidade entre a experiência analítica e a pesquisa, seria preciso admitir a aplicação do método a outras situações não estritamente analíticas. Isso implica na possibilidade de o pesquisador realizar um trabalho pautado na escuta psicanalítica de depoimentos e entrevistas, colhidos em função da questão que se pretende investigar. Ademais, a partir das contribuições da mencionada autora, podemos inferir que o método psicanalítico - pautado na escuta e na interpretação - pode inclusive ser empregado em outras modalidades de coleta de dados, por exemplo, em uma leitura-escuta (Iribarry, 2003, p. 127), ou seja, uma leitura guiada pela escuta ou atenção flutuante.


De acordo com Laplanche e Pontalis (2011), a regra da atenção (uniformemente) flutuante consiste na maneira pela qual o analista deve escutar o analisando: “[...] não se deve privilegiar a priori qualquer elemento do discurso dele, o que implica que deixe funcionar o mais livremente possível a sua própria atividade inconsciente e suspenda as motivações que dirigem habitualmente a atenção” (p. 40).


Podemos identificar uma menção precoce a essa regra no caso do Pequeno Hans: “Por enquanto, deixaremos em suspenso nosso julgamento e daremos nossa atenção imparcial a tudo quanto houver para observar” (Freud, 1909/1996b, p. 29). Mais adiante, no texto Dois verbetes de enciclopédia, Freud (1923/1996d) abordou novamente a regra da atenção flutuante, ratificando as vantagens de tal atitude para o tratamento psicanalítico.


É, com efeito, em suas Recomendações aos médicos que exercem psicanálise, que Freud (1912/1996c) apresenta com maior clareza a regra da atenção flutuante. Nos dizeres do autor, exige-se ao analista a regra que - enquanto contrapartida necessária à regra fundamental da associação livre - “consiste simplesmente em não dirigir reparo para algo específico e manter a mesma ‘atenção uniformemente suspensa’ em face de tudo o que se escuta” (p. 125).


Vemos que a definição da atenção flutuante comporta uma preocupação central: a de que não se concentre deliberadamente a atenção sobre determinados conteúdos em detrimento de outros, guiando-se apenas pelas inclinações ou expectativas pessoais. Ao descumprir essa regra, Freud adverte que o analista incorre no risco de não descobrir nada além daquilo que já sabia. Ademais, essa regra justifica outra recomendação feita pelo autor aos médicos que exercem a psicanálise: a de não tomar notas integrais durante as sessões. Novamente, aqui, corre-se o risco de efetuar uma seleção prejudicial do material da análise.


Deve-se ressaltar que nos Estudos sobre histeria, Freud sublinhou a importância decisiva que suas descobertas com as pacientes histéricas tiveram na construção dos primeiros rudimentos do método psicanalítico. O caso da Sra. Emmy Von N., por exemplo, aparentemente preparou o terreno para o uso do método da associação livre e, por extensão, da atenção flutuante. A Sra. Emmy mostrava-se aborrecida quando Freud lhe questionava de onde se originava esta ou aquela lembrança: “Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isto ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer” (Freud, 1895/1996a, p. 95).


Aos poucos, o autor percebe que, ao não constranger a narrativa da paciente, deixando-a exprimir indiscriminadamente tudo o que lhe ocorre à mente, adquire acesso a uma grande quantidade de material relevante para o processo de análise. Isso, por sua vez, exigiria como contrapartida por parte do analista, uma postura tal que o levasse a escutar o paciente sem negligenciar nada do que lhe falou, de modo que o analista procure conter a influência consciente da sua capacidade de dirigir a sua atenção.


Por ora, podemos concluir que a exigência - proveniente da prática clínica - de que o analista mantenha uma atenção suspensa (ou flutuante) deve inclusive ser aplicada quando se pretende realizar uma pesquisa bibliográfica. Destarte, o pesquisador psicanalítico é guiado em sua leitura-escuta por suas impressões transferenciais acerca do texto, o que indica que ele está diretamente implicado ao analisar os dados da pesquisa. Segundo Loureiro (2002), a metodologia de pesquisa psicanalítica apresenta certa passividade na medida em que o objeto de estudo é deixado à solta, seguindo o seu próprio percurso. Por seu turno, o pesquisador é guiado pelo objeto, utilizando-se da sua associação livre, demonstrando assim o papel ativo que exerce no processo de construção do estudo.


3 A arbitrariedade do intérprete: a limitação e a pontência do método psicanalítico


Diante daquilo que apresentamos na primeira seção deste estudo, propomo-nos aqui a examinar o que entendemos como a principal vantagem e limitação do método psicanalítico na elaboração de pesquisas. A pesquisa psicanalítica, justamente por lidar com a imprevisibilidade do inconsciente, não poderia jamais exigir uma completa sistematização do trabalho, pois, assim como na experiência analítica, prioriza o estilo e o traço singular do analista. Nesse sentido, Iribarry (2003) acrescenta que a pesquisa psicanalítica “é sempre uma apropriação do autor que, depois de pesquisar o método freudiano, descobre um método seu, filiado a essa vertente e o singulariza na realização de uma pesquisa” (p. 117).


Essa apropriação ativa do autor em face ao objeto do estudo é aquilo que pretendemos analisar - sem esgotarmos o assunto - como sendo a principal potência e, concomitantemente, a principal limitação da pesquisa em psicanálise. Para tanto, retomamos um conceito formulado por Birman (1994): a arbitrariedade na função do intérprete. Nos dizeres do autor, “esse arbitrário da interpretação coloca um limite fundamental na representação empirista do saber psicanalítico, deslocando esse saber do campo do determinismo, para o campo do indeterminismo” (p. 20).


Nessa perspectiva, coloca-se um problema fundamental: como seria possível validar ou invalidar as proposições interpretativas no campo do saber psicanalítico? Ou, dito de outra maneira, as hipóteses construídas pela psicanálise são verificáveis? A verdade do discurso do analista é incontestável? O saber psicanalítico seria uma modalidade de discurso teórico que estaria, portanto, situado ao lado das especulações filosóficas?


Entendemos que se trata de um bloco de indagações de grande importância para o desenvolvimento do campo psicanalítico. Para tentarmos elucidá-las, recorremos ao texto freudiano intitulado Construções em análises. Freud (1937/1996g) escreveu esse ensaio com o escopo de contestar a tese de um interlocutor - referido apenas como um bem conhecido homem de ciência -, de que ao fornecermos interpretações ao analisando, estaríamos seguindo o princípio do “cara, eu ganho; coroa, você perde...” (p. 275). Ou seja, para o interlocutor, a interpretação oferecida ao paciente é sempre incontestável a despeito da sua confirmação.


No referido ensaio, Freud assevera que o trabalho da análise desdobra-se em duas partes distintas, a do analista e a do analisando, de modo que para cada uma dessas, atribui-se uma tarefa específica. Ao analisando cumpre o esforço de tentar recordar aquilo que foi experimentado e que sofreu a ação da repressão. Por sua vez, ao analista compete “completar aquilo que foi esquecido, a partir dos traços que [o paciente] deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo” (Freud, 1937/1996g, p. 276). Nesse ponto, o autor aproxima a tarefa do analista e do arqueólogo, pois ambos pautam o seu trabalho na “reconstrução” a partir dos restos ou vestígios encontrados nos escombros. No entanto, Freud ressalta que no caso do analista, todos os elementos essenciais encontram-se preservados, não obstante uma parte deles tenha se tornado inacessível ao indivíduo.


Doravante, o autor procura problematizar a ideia de que o analista poderia cometer equívocos enquanto trabalha nessas construções, arriscando o êxito do processo terapêutico, quando apresenta alguma construção errônea. Freud afirma que a experiência analítica nos ensina que nenhum dano é causado se, por acaso, nos equivocamos ao oferecermos uma construção incorreta ao paciente como se fosse a verdade histórica provável. Nos dizeres do autor:


Só o curso ulterior da análise nos capacita a decidir se nossas construções são corretas ou inúteis. Não pretendemos que uma construção individual seja algo mais do que uma conjectura que aguarda exame, confirmação ou rejeição. Não reivindicamos autoridade para ela, não exigimos uma concordância direta do paciente, não discutimos com ele, caso a princípio a negue. Em suma, conduzimo-nos segundo o modelo de conhecida figura de uma das farsas de Nestroy - o criado que tem nos lábios uma resposta para qualquer questão ou objeção: ‘tudo se tornará claro no decorrer dos futuros desenvolvimentos’ (Freud, 1937/1996g, p. 283).


De acordo com Birman (1994), “a exigência de cientificidade das hipóteses metapsicológicas no discurso freudiano se evidenciava na demanda de verificação, que se realizaria mediante o processo de rememoração do analisante na experiência psicanalítica” (p. 20). Diante dessa assertiva, apreendemos que a verdade do discurso do analista é submetida à confrontação através do processo de rememoração do analisante. Contudo, devemos ressaltar que Freud mostrava-se excessivamente prudente na formulação de suas hipóteses a fim de não incorrer no risco de constituir um sistema interpretativo delirante. É evidente, em alguns dos ensaios freudianos, a incerteza do autor quanto a algumas formulações teóricas, notadamente aquelas ligadas à “feiticeira” metapsicologia. A obra de Freud é povoada de fragmentos de raciocínio tipicamente mágicos que o próprio autor apontava, afirmando a necessidade de buscar uma maior convicção para situá-los no registro da ciência (Coelho, 2007).


No entanto, se por um lado a arbitrariedade do intérprete configura um risco iminente na construção teórica da psicanálise, por outro lado, a implicação do pesquisador na apropriação do objeto de estudo constitui a própria potência do saber psicanalítico. Ao colocar-se de maneira ativa na construção do estudo, deixando-se levar pelo livre fluxo das ideias, o pesquisador é lançado em direção a novas contribuições. Indubitavelmente, esse é um dos maiores legados do percurso de Freud, pois o autor sempre foi guiado por suas inclinações pessoais diante dos dados de sua pesquisa (sem, no entanto, fazer disso seu único farol). A esse respeito, acrescenta Fédida (1992 citado por Iribarry, 2003): “foi graças à sua interferência subjetiva que a psicanálise nasceu como uma teoria, um método e uma técnica de tratamento” (p. 127).


4 Considerações finais: em defesa do espaço da psicanálise na produção de conhecimento


À guisa de conclusão, retomaremos alguns dos principais aspectos que foram abordados neste estudo a fim de esboçar alguns direcionamentos que entendemos ser de fundamental importância para nortear a realização de pesquisas com orientação psicanalítica. Interessa-nos, com efeito, fazer uma defesa do método psicanalítico na produção de pesquisas, sobretudo aquelas de cunho eminentemente bibliográfico. Tratamos, com isso, de defender o próprio espaço da psicanálise no universo da pesquisa acadêmica e seu uso no campo dos estudos da cultura e da sociedade, que, aliás, Freud defendia como principal campo de impacto da análise. Dada a brevidade do nosso trabalho, sublinhamos que não temos o intuito de anunciar um paradigma para a pesquisa psicanalítica, mas, tão somente, pretendemos apresentar alguns apontamentos que podem auxiliar na realização dessas pesquisas.


No início do texto procuramos problematizar a legitimidade da afirmação da existência de uma oposição entre uma psicanálise pura e outra aplicada - teoria e clínica -, mostrando que esse dualismo não pode ser sustentado pela psicanálise como se tratassem de compartimentos estanques. Afirmamos então, que os procedimentos investigativos da psicanálise encontram na clínica a sua principal referência de apoio. Dito isso, buscamos caracterizar a especificidade do método psicanalítico pautado na escuta e na atividade interpretativa, dando ênfase à possibilidade de sua aplicação a outras situações não estritamente analíticas desde que sejam mantidas as mesmas exigências provenientes da prática clínica.


No caso de um estudo bibliográfico, por exemplo, a mesma recomendação de que o analista mantenha a sua atenção uniformemente suspensa, não dirigindo o reparo para um conteúdo específico, deve ser preservada. Ademais, de modo idêntico ao que acontece no setting analítico, o analista utiliza-se da atividade interpretativa, bem como das construções, de modo que possa ir além daquilo que a leitura lhe possibilitou. Na conferência intitulada A questão de uma Weltanschauung, Freud (1933/1996e) chama atenção para uma possível aproximação entre o trabalho científico e o analítico, apontando certa semelhança na postura do cientista e do analista. Em conformidade com nosso objetivo, entendemos que a mesma postura deve pautar o trabalho do pesquisador que faz uso do método psicanalítico. Nos dizeres do autor:


O progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise. Trazemos para o trabalho as nossas esperanças, mas estas necessariamente devem ser contidas. Mediante a observação, ora num ponto, ora noutro, encontramos alguma coisa nova; mas, no início, as peças não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência e vivacidade em qualquer eventualidade, renunciamos às convicções precoces, de modo a não sermos levados a negligenciar fatores inesperados, e, no final, todo o nosso dispêndio de esforços é recompensado, os achados dispersos se encaixam mutuamente, obtemos uma compreensão interna (insight) de toda uma parte dos eventos mentais, temos completado nosso trabalho e, então, estamos livres para o próximo trabalho (Freud, 1933/1996e, pp.169-170).


Ressaltamos então que não se pode prescindir das especulações, tampouco evitar que o pesquisador esteja diretamente implicado na realização da sua investigação, o que não impede que seja mantido o rigor da pesquisa psicanalítica a despeito da possibilidade de trilharmos um caminho delirante. O próprio Freud (1937/1996f) admitiu: “Sem especulação e teorização metapsicológica - quase disse ‘fantasiar’ -, não daremos outro passo à frente” (p. 241). Assim como na experiência analítica, a atividade interpretativa e as construções constituem somente um trabalho preliminar (Freud, 1937/1996g, p. 278) no desenvolvimento da pesquisa, ou seja, tais ferramentas possibilitam a emergência de novas associações que permitem um novo entendimento do texto. Dessa forma, graças à aplicação das exigências provenientes da prática clínica na condução das investigações e à interferência subjetiva de Freud, surgiu - e foi, por diversas vezes, reformulada - a “feiticeira” (Freud, 1937/1996f, p. 241) metapsicologia, aparelho teórico-conceitual da psicanálise.


Referências


Birman, J. (1994). A direção da pesquisa psicanalítica. In: J. Birman. Psicanálise, ciência e cultura. (pp.13-53). Rio de Janeiro: Zahar.

Coelho, D. (2007). Sobre a questão de uma Weltanschauung: entre delírio e conhecimento. [Versão eletrônica] Cadernos UFS - Psicologia, 9, p. 7-21.

Frangiotti, M. A. (2003). Contribuições de Wittgenstein à epistemologia da psicanálise. [Versão eletrônica] Nat. hum., 5(1), pp. 59-93.

Freud, S. (1996a). Estudos sobre a histeria: Caso 2 – Sra. Emmy Von N. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1895).

Freud, S. (1996b). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 10). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1909).

Freud, S. (1996c). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1912).

Freud, S. (1996d). Dois verbetes de enciclopédia. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1923).

Freud, S. (1996e). A questão de uma Weltanschauung. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 22). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1933).

Freud, S. (1996f). Análise terminável e interminável. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 23). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1937).

Freud, S. (1996g). Construções em análise. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (vol. 23). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1937).

Iribarry, I. N. (2003). O que é pesquisa psicanalítica? [Versão eletrônica] Ágora, 6(1), 115-138.

Laplanche, J.; Pontalis, J.-B. (2011). Vocabulário da psicanálise. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes. (Obra original publicada em 1967).

Lo Bianco, A. C. (2003). Sobre as bases dos procedimentos investigativos em psicanálise. [Versão eletrônica] Ver. Psico-USF, 8(2), 115-123.

Loureiro, I. (2002). Sobre algumas disposições metodológicas de inspiração freudiana. In: Queiroz, E. F; Silva, A. R. (Orgs.). Pesquisa em psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta.

Rosa, M. D. (2004). A pesquisa psicanalítica dos fenômenos sociais e políticos: metodologia e fundamentação teórica. [Versão eletrônica] Revista Mal-estar e Subjetividade, 4(2), 329-348.


NOTES ON THE PSYCHOANALYTIC METHOD IN RESEARCH


Astract


This study aims to present some remarks which we understand that are crucial to guide a research with psychoanalytical orientation. We must highlight that our main interest is to formulate a defense of the psychoanalytic method in the production of research, especially those eminently theoretical. We take as starting point the questioning of the legitimacy of an opposition between a pure psychoanalysis and the other applied – theory and clinical practice – showing that this dualism cannot be sustained by psychoanalysis, as if they were separated compartments. Then, we characterize the specificity of the psychoanalytic method, based on listening and interpretation, emphasizing the possibility of its application to other situations then the one stricly found at the cabinet, as long as we keep the same requirements from clinical practice. After, we underline how the arbitrary function of the interpreter may, at the same time, provide the power and the limitations of the psychoanalytical method. Finally, we try to point out some directions for psychoanalytic research, stressing the importance of the work of construction in analysis and speculation for the researcher.


Keywords: Psychoanalysis; method; research.


REMARQUES SUR LA MÉTHODE PSYCHANALYTIQUE DANS LA RECHERCHE


Résumé


Cette étude vise à présenter certaines questions qui, selon nous, sont d’une importance primordiale pour orienter la conduction de la recherche psychanalytique. Il convient de noter que notre intérêt principal est de formuler une souténance de la méthode psychanalytique dans la production de la recherche, en particulier ceux éminemment bibliographique. Nous prenons comme point de départ de la question de la légitimité d’une opposition entre une psychanalyse pure et appliquée de l’autre – la théorie et la pratique clinique –, montrant que ce dualisme ne peut pas être soutenue par la psychanalyse. Ensuite, nous caractérisons la spécificité de la méthode psychanalytique, basée sur l’écoute et l’interprétation, mettant l’accent sur la possibilité de son application à d’autres situations ne sont pas strictement ceux qui on rencontre au cabinet, à condition qu’ils soient maintenus les mêmes exigences de la pratique clinique. Désormais, nous mettons en évidence la façon dont la fonction arbitraire de l’interprète peut, dans le même temps, fournir la puissance et les limites de la méthode psychanalytique. Enfin, essayez de préciser quelques orientacions pour la recherche psychanalytique, en soulignant l’importance du travail de construction dans l’analyse et la spéculation pour le chercheur.


Mots-clés: Psychanalyse; la méthode; la recherche.


NOTAS SOBRE EL MÉTODO PSICOANALÍTICO EN LA INVESTIGACIÓN


Resumen


Este estudio tiene como objetivo presentar algunos temas que creemos de suma importancia para conducir la realización de investigaciones con orientación psicoanalítica. Cabe señalar que nuestro principal interés es formular una defensa del método psicoanalítico en la producción de la investigación, sobre todo aquellas de orden bibliográfico. Tomamos como punto de partida el cuestionamiento de la legitimidad de una oposición entre un psicoanálisis puro y otro de aplicado – teoría y clínica –, evidenciando que este contraste no puede ser sostenido por el psicoanálisis. Seguidamente, caracterizamos la especificidad del método psicoanalítico, fundamentado en la escucha y la interpretación, con énfasis en la posibilidad de su aplicación a otras situaciones no estrictamente de gabinete, siempre que se mantengan los mismos requisitos de la práctica clínica. Después, destacamos cómo la función arbitraria de la intérprete puede, al mismo tiempo, constituir la limitación y la potencia del método psicoanalítico. Por último, buscamos señalar algunas direcciones de investigación psicoanalítica, destacando la importancia del trabajo de las construcciones en el análisis y de las especulaciones para el investigador.


Palabras clave: Psicoanálisis; método; investigación.


Recebido/Received: 11.7.2012/7.11.2012
Aceito/Accepted: 17.9.2012/9.17.2012


Daniel Menezes Coelho*
Psicanalista, doutor em Teoria Psicanalítica Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor adjunto II do Departamento de Psicologia e do Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe. (São Cristóvão, Sergipe, Br.) daniel7377@gmail.com


Marcus Vinicius Oliveira Santos**
Graduado em Psicologia pela Universidade Tiradentes. Mestrando em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe. (São Cristóvão, Sergipe, Br.) marvin.psc@gmail.com